Lux Lisbon foi deixada para trás, e eu também.
eu acordei um dia e me senti abandonada em um gramado de um campo de futebol.
“Se você me abraçar sem me machucar, será o primeiro a fazer isso.”
Eu sabia que aquela cena me assombraria para sempre, e eu não estou falando sobre uma cena de filme.
Sofia Coppola soube exatamente como não somente tocar meu coração mas apertá-lo com toda a sua força usando suas estratégias cinematográficas. As Virgens Suicidas (2000) soa para mim como alguém mastigando e cuspindo em forma de filme a dor de ser uma mulher, e tudo isso de forma tão cruel quanto o parto de uma nova criança. É uma obra ao mesmo tempo tão acolhedora quanto destruidora. E como se não bastasse toda a complexidade das personagens, a sequência de mortes por suicídio e o fato de ser uma produção narrada pela visão de homens muito jovens claramente fascinados pela feminilidade e a pureza atribuída à mesma, Coppola também deu vida à cena mais crua e poética sobre ser deixada, abandonada, esquecida.
Lux Lisbon estava em um limbo azul e vazio quando acordou pela manhã depois do baile. Com pesar, eu não pude perguntar pessoalmente à personagem ou ter uma conversa com a atriz, e muito menos me comunicar com o autor do livro, mas senti através da dor guardada em meu peito tudo o que Lisbon estava sentindo no caminho de volta para casa. Porque já estive naquela situação. Não por uma ou duas vezes, mas por várias, desde que completei os meus 18 anos.
Sempre me perguntei se valia a pena deixar que tivessem acesso ao meu corpo em troca da sensação de ser amada por 1 hora ou menos. No meu íntimo, eu já sabia a resposta. Mas confesso a resistência que reside em mim até hoje e admito que tenho a mania de não querer me dar ouvidos. Sempre que alguém me tocou, olhou para mim com outros olhos, me beijou ou elogiou a minha aparência transfigurada, eu me senti vista, desejada, lembrada, digna de uma fantasia de amor. E isso foi o suficiente.
Em 2023 assisti ao filme de Sofia Coppola. Nesse mesmo ano conheci o garoto que me fez perder a crença de que estava construindo uma autoestima sólida e uma boa base de amor próprio. Em 30 de maio — nosso primeiro encontro — comecei a me odiar, ou melhor, voltei a me odiar. Eu me sentia na obrigação de agradá-lo, e se isso significava usar meu corpo como recurso para mantê-lo perto de mim, eu o fazia. Queria ter por perto tudo aquilo que me lembrava o amor, fossem migalhas, resquícios ou inverdades. E por mais que aquilo me machucava, eu não conseguia abrir mão. Era um vício masoquista.
Chorei quando ele partiu e senti um buraco se abrindo em meu peito. Aquilo me consumiu. Em um domingo qualquer, depois de me entregar a alguém que claramente me via como um prêmio a ser conquistado, ele me deixou em casa dizendo que não estava pronto para dar início a uma relação. E suas duas últimas frases foram “se cuida” e “te amo”.
Quando ele voltou, inocentemente, pensei que tudo mudaria; as promessas se tornariam realidade, eu não seria mantida em segredo, descobriria que para ser amada não seria necessário sentir dor e que ele ia dizer tudo aquilo que uma garota tão sozinha como eu precisava escutar. Ledo engano. Nada aconteceu. Eu estava de novo aceitando o pouco que ele tinha para oferecer pelo medo sufocante do nada.
Fui até a casa dele, paguei o meu próprio carro de aplicativo, e naquela noite, pela primeira vez, eu entendi a cena pós baile, quando Trip tirou a virgindade de Lux e foi embora sem dar motivos ou explicações. Eu entendi a escolha das cores que tornou a atmosfera ainda mais cortante, a neblina no campo de futebol e a maneira como afastaram a câmera, mostrando um grande espaço vazio preenchido apenas por uma figura feminina em um vestido de estampa floral. Eu me vi naquele mesmo lugar. Deixada para trás. Não de maneira literal, pois nunca tiveram a oportunidade de fugir, mas algo me diz que por muito pouco não performaram a mesma cena que tanto ressignificou a minha dor.
Deitada sobre a cama dele, despida até a alma, vulnerável, ouvindo ele falar sobre meu corpo, seguido de um excruciante silêncio e um olhar de cima para baixo como se eu estivesse sendo vista com desprezo e pena. Aquilo foi o fim. Ele estava sentado do outro lado do quarto — que naquele momento parecia a quilômetros de distância — sem toques físicos e sem sinais de que eu poderia vir a me tornar alguém de quem ele poderia algum dia gostar. Ele me pediu que fosse embora. Um beijo sem vida e um abraço solto sem intenção alguma de amarras. Desde então, nunca mais o vi.
Depois do acontecido, tal qual a irmã Lisbon de 14 anos, numa tentativa desesperada de preencher o vazio dentro de mim e em uma busca imediatista de encontrar uma pessoa que me fizesse provar para qualquer um que fosse e, principalmente, para mim mesma que eu era capaz de ser amada, tive os encontros mais absurdos com os seres mais desprezíveis que tive o desprazer de conhecer. Como Guinevere Beck (You) os descreveu “os meninos disfarçados de homens” me encontraram exposta um por um e eu dei liberdade a cada um deles para me diminuir até que sobrasse nada mais do que uma única fração de mim. Fiquei tão pequena que nunca mais cresci. Não encontro a minha antiga versão e não tenho a capacidade de rebobinar a fita. Sinto que estou presa no telhado de casa por já não poder mais fugir de dentro dela me unindo a desconhecidos como se estivesse sendo dirigida por Sofia Coppola. Mas a minha vida infelizmente não é um filme com filtros bonitos e estética bem trabalhada. E em todas as vezes que fui usada e menosprezada depois como um objeto descartável não me pareceu poético ou inspirador, pelo contrário, foi tão triste quanto a vida real exige que seja.
Ainda mais triste é a obrigação que sinto em abraçar esta versão minha de vinte e poucos anos que se vê espelhada em uma jovem fictícia — mas de extrema veracidade — de quatorze anos que se deita com rapazes que não permanecem.
Jeffrey criou a história. Sofia a reproduziu. Assisti ao filme, testemunhei a cena, gravei-a na memória, compadeci aos sentimentos de outra garota, mas o que continua a me assombrar até hoje aconteceu bem aqui comigo na realidade. E desde que vim ao mundo, o que me acontece todos os dias é ser mulher.
Minha nossa, que texto maravilhoso amiga, a música, a vibe do texto, tudo perfeito, eu amei!!!!💙🥺
que texto intenso! me senti representada em cada linha.